Projetos

Naquela rua

Naquela rua

 

Por Flora Monteiro
Fotos Alexandre Pirani

 

Na morada paulistana que integra ateliê e residência, não são apenas as telas em branco que ganham cor pelas mãos de Tatiana Blass. Armários, ladrilhos, portas e janelas também se tornam peças únicas – valorizadas pelo fato da artista ser quem é.

 

 

O sobrado de paredes brancas, porta verde-claro e maçaneta laranja é o mais charmoso da estreita rua que corta o bairro paulistano da Vila Romana. A fachada, conservada com os mesmos traços arquitetônicos desde a década de 1920, tem cacife para chamar a atenção até mesmo dos pedestres mais distraídos. Os curiosos espicham os olhos para ver o entra e sai dos moradores – que, diga-se de passagem, também não passam despercebidos. Ele é o músico e compositor Romulo Fróes e ela, a artista plástica – e minha prima – Tatiana Blass. De olhos verdes como a paleta da sua toca, fala mansa e jeito discreto, Tati é a vencedora do Pipa 2012, relevantíssimo prêmio de arte brasileira, e a autora de pinturas e instalações inquietantes. Na Bienal de São Paulo, em 2010, despejou parafina derretida nas cordas de um piano, enquanto o músico tentava vencer a distorção do som. No ano passado, enterrou um carro no concreto em frente à Galeria Millan, na Vila Madalena. Estar diante das obras dela é quase tão indescritível quanto ficar entre as quatro paredes de sua morada.

 

 

 

No espaço de 134 metros quadrados, nada perturba. Ao contrário, acolhe e inspira. A distância entre a calçada e a escada de acesso ao ambiente interno, que integra sala, escritório e cozinha, pode ser vencida em apenas um passo – o sobrado não tem portão e nem cadeado para intimidar o perigo externo: uma fechadura é o suficiente. Ali dentro, cada peça do mobiliário e detalhe da decoração tem uma história. O corrimão de latão dourado foi feito com a sobra de uma instalação; a parede de cobogó é a realização de um desejo antigo de Romulo e o motivo do pantone verde dominar o lar: “Ele queria porque queria o cobogó e, a um preço acessível, só encontramos nessa cor. A partir daí, defini a tonalidade da porta e de outros detalhes”, conta a anfitriã. O sofá, assim como outros móveis, foram herdados da bisavó e personalizados pelas mãos da artista; o lustre do teto, encontrado no porão de uma loja de antiguidades, nem preço tinha. “O dono não pensava que ainda podia vendê-lo”, lembra. As pinturas, fotografias e gravuras resultaram de trocas de obras entre os colegas de profissão, como Sérgio Sister, Renata Lucas e Rafael Assef. “Algumas são presentes, como o quadro do Nuno Ramos. Ele me deu porque achou a minha cara.” Apaixonada por relógios, Tatiana arrematou uma cesta com mais de dez unidades por R$ 15 – a passagem do tempo prejudicou o funcionamento das engrenagens, mas enriqueceu o potencial decorativo dos itens. Cadeiras e carros em miniatura também são indícios do espírito colecionista de Tati, que reservou um cantinho especial para eles. No espaço, há ainda peças emblemáticas, como a cadeira de Jean Prouvé e a poltrona Paulistano, de Paulo Mendes da Rocha.

 

 

 

O cenário lúdico, que mistura com muita classe antiguidades, arte e mobiliário nobre, é emoldurado por paredes brancas e janelas. “Os proprietários queriam ambientes amplos, iluminados e arejados que conversassem bem com as obras”, explica o arquiteto Leonardo Sette, responsável pelo projeto ao lado da arquiteta Maria Isabel Imbronito. Na área social, a cozinha é tão cativante quanto a sala. O chão de ladrilhos hidráulicos e os armários da Dell Anno se tornaram peças únicas depois das intervenções de Tatiana, que fez também o desenho da mesa. Uma passarela lateral conduz à suíte do casal e à escada que leva ao primeiro andar, onde fica o ateliê. É nesse galpão, repleto de tintas e pincéis, que ela dá cor às telas brancas e corpo às obras performáticas – o projeto da instalação para a individual no Museum of Contemporary Art Denver, no Colorado, em julho, já está concluído, assim como algumas telas para a exposição na Vogt Gallery, em Nova York, marcada para setembro.

 

 

 

Antes de deixar o sobrado, aceitei um café. Enquanto bebericava, lembrei-me de um momento que passei ali. Era uma festa de família e estava subindo a escada de entrada com a minha priminha Maria Blass, na época com quatro anos. Quando passamos pela parede de cobogó, ela apontou o interior da casa através dos buracos e disse: “Olha, parece tudo de mentira”. Não há descrição melhor para o refúgio, capaz de surpreender até a imaginação infantil.

 

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